Olha, filha, para lhe arranjar um marido, não quer ela, e ninguém. Com
estas sardas do cabelo às unhas das mãos e dos pés, parece minha Rosa
esculpida num bloco de grés. Além disso, cabelos cor de corda,
coitadinha… No mar, com a grande chata, deita a rede dois, trêz vezes,
e traz mais peixe que o arrastão do homem. Vende ele a pesca a
outros, ela me dá a sua, e vai buscar mariscos à praia. Tomo o avental,
e, num abrir e fechar os olhos, fica a tenda arrumada. Talvez fale
verdade, Mariana, mas um dia, quem sabe, passa um rapaz, vai-se a Rosa.
A Rosa era também grande como uma alabarda, e forte como
um boi. Precisava grandes remos, e grande chata para estar à
vontade. Só comia os peixes que pescava, e a sopa da mãe com batatas e
hortaliça que ia comprar ao Bolhão. Uma sopa espessa podia-se apenas
molhar a broa dentro, e gostosa, compravam dela muitos boiões.
Saia uma vez a Rosa do mercado, carregada como uma burra,
quando ouviu musica na rua Santa Catarina. A tuna de medicina cantava «
Linda donzela vem à janela que a tuna passa. » Havia gente na rua,
ninguém às janelas. Não viu a Rosa os estudantes que cantavam, nem as
violas, só viu o guitarrista. Olhos altos, nariz grande e forte, boca
atrás, grande pescoço, tinha mesmo uma cara de cavalo. Sabia cantar
como os outros, mas não podia. Na aldeia onde a mãe tinha quintas,
quando entoava « Água leva o regadinho… » era como os coros dos
Escravos do Nabuco. Tentou o João Carlos uma vez para os condiscípulos
: « E alegre se fez triste. » Gritaram eles : « Quando queremos
ouvir bel canto, pá, vamos à Casa da Música ! Parece mesmo uma
bigorna, mas é muito linda para aqueles que gostam. » O João Carlos
tocava felizmente guitarra como ninguém.
Os estudantes cantaram : « Tenho barcos, tenho remos… » Só
tinha a Rosa uma grande chata, mas tinha remos. Olhou para o estudante
com seus olhos cor de malva, olhou ele para as sardas da menina. Cupido
faz a que quer, a gente não. João Carlos continuou a tocar, a Rosa
foi-se à estação São-Bento.
Continuou a pescar como antes, alguns peixes tinham cara
de cavalo. João Carlos defendeu sua tese, as mulheres não tinham
sardas. O estudante não sabia onde buscá-la, e quase não pregava olho
toda a noite. A Rosa não foi perguntar, à faculdade de medicina, por um
rapaz com cabeça de cavalo. O João Carlos estava uma vez de madrugada
nos cais, nem sabia porquê. Atirou-se ao rio. Abriram-se as abas da
capa, levando o estudante ao mar, à chata da pescadora. Pousou à popa.
Entre a cabeça de cavalo, e as sardas da menina, havia uma montanha de
peixes.
Não gritou a Mariana quando viu a menina com a pesca e o fulano que tinha cabeça de cavalo. Perguntou :
— E agora ? Vou comprar os peixes como as outras ?
— A menina continua a pescar para a senhora, disse o
estudante, enquanto atendo os doentes. A cada um seu negócio.
— Médicos e pescadoras, só nos contos.
— Parece mesmo um conto, mas a mãe quer netos.
Esteve quase a rir a peixeira, imaginando filhos com sardas e cara de cavalo.
Foram à praia buscar mariscos. João Carlos entrou na água,
para sentar-se sobre um rochedo a três metros da beira, e entoou o
canto dos Escravos do Nabuco. De todas os lados, acudiam lagostas,
lavagantes, lagostins, santolas, e os caranguejos trepavam sobre o
rochedo, entre os percebes que balançavam-se, saiam conchas da areia ao
lado da Rosa. Lindo par e boa sina.
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