Uma coruja das torres grande como dois bufos reais, isso lá não pode
ser. Podia à porta duma taberna no princípio do século XV. Não era
pintada, mas esculpida no tronco dum ulmeiro centenário depois da
grande pesta do ano 1348, pelo José António Nobre, um marceneiro que
nunca fez outra escultura. Cadeiras, mesas, armários, portas, janelas e
coisas dessas, sim, e vigamentos por falta de carpinteiros. Nem quiz
vendê-la, essa coruja, a ricaços que achavam-na bonita. Não era bonita
era sua, mesmo se os operários deviam contorná-la, como ele. Legou-a ao
neto e mobilou a taberna. A coruja, ela, á porta da taberna ficava
mesmo frente a frente da igreja de São Francisco. O taberneiro era
também um artista. Transformava qualquer carne em coisa que nem podem
imaginar, como os legumes das hortas, ou secos. Que as carnes fossem
assadas, fritadas, cozidas, a coruja cheirava-as todas e aprendia o que
é bom, ouvindo os cantos na igreja e sermões, aprendia o que é
bem. Sabia o José Lopes o que fazia esculpindo-a ? Na estatueta
de madeira batia um coração de pau. Queria entrar na igreja, mas não
entram nas igrejas corujas de madeira. Os seus olhinhos cravados
em cima da sua cara, como pregos numa almofada en forma de coração
brilhavam, viviam, fremia o biquinho mais abaixo, que fazia como uma
virgula ao seu nariz — que só via-se de perfil. Havia uma velha
aleijada com cara de bruxa e muletas ; quando passava, rapazões davam
pontapés numa das muletas só para vê-la agitar os braços imensos para
ficar de pé, cair devagarinho, e agarrar as muletas para
levantar-se, sobre as perninhas ; parecia mesmo um orangotango. Os
passantes que viam desviavam os olhos. A coruja de madeira, não
aturava, e tampouco aturava o que via. Queria socorrê-la e não podia
soltar-se do seu ramo de ferro. Não sei o que pediu a Deus mas
desdobrou-se, um dia. Era sempre uma coruja de madeira, mas também uma
moça de carne que foi ajudar a desgraçada e viram todos que a velha
podia então andar sem as muletas. A menina tinha uma cara de coruja,
como un coração, sobrancelhas fofas, olhos bem espetados, nariz
direito, vertical, et a boquinha sob o nariz. Foi à igreja de São
Francisco, onde ficou até o anoitecer da tarde. E, antes de passar a
noite no corpo da coruja de madeira comeu muita carne à taberna, onde o
Pafunso Nobre a reconhecerá, como o cura e os fregueses. São Francisco
falava ao vento, à chuva, às aves, aos bichos. Entram o vento e a chuva
nas velhas igrejas, muitos ratos sob as telhas e corujas para comê-las.
Aquela podia mesmo entrar dentro da nave, quando parecia uma moça como
as outras. Porque não ? Jà se viram paroquianos que são asnos a ouvir
padres que são burros. Fez a menina muito bem no bairro. Curava
enfermidades, e quando queria dar pão aos pobres, havia logo pão na sua
mão aberta, e mesmo garrafinhas para os bêbedos que sofriam de sede.
Chamavam-na a Santa Coruja da Ribeira. Pessoas diziam que na aurora
viam-na com a cabeça à esquerda ou à direita. Observava o rio por entre
os tectos. Fremiu uma tarde o Douro d’uma maneira estranha. Não era a
maré. Eram centenas de ratos a nadar contra a corrente, como para
invadir a cidade a montante. Pensou que o marceneiro a tinha esculpida
para tal eventualidade, depois da grande peste. As asas de madeira
rangeram pela primeira vez, ela pôde largar enfim o ramo. Quanto mais
voava, crescia, cobria-se de carne, de penugem e de penas. Voava
a flor de agua. Eram os ratos todos puxados no beco, digeridos apenas
ingeridos, e cagados sobre os outeiros Douro acima. Exalava sua merda o
perfume dos ascetas mortos que secam e das rosas dos jardins. Comeu e
cagou 1938 ratos. Foi a coruja, depois daquela façanha, descansar
dentro de seu corpo de madeira, feliz como os santos no paraíso.
Descansou cinquenta dias assim. Partiu entretanto o Infante Dom
Henrique para Ceuta com sua armada, que os Portuenses deviam abastecer.
Desapareceu assim toda a carne do Porto, só ficaram as miudezas e as
tripas. O Pafunso tinha chouriços, sacos inteiros de favas, folhas e
mãos de vitela, galinhas de Miragaia, cabeça de porco, toucinho,
orelheiras, cebolas e cenouras. Cozeu tudo isso, e meteu amêijoas e
tentáculos de polvos dentro, inventando uma receita que servem ainda,
mas com feijões, et sem mariscos. No quinquagésimo dia foi a moça matar
o bicho, e comeu tripas à tripa-forra. Estava sentado à outra mesa um
rapaz com sobrancelhas bem fixadas ao nariz que corriam como um leque
apenas aberto até as fontes. Não sei o que piou o rapaz à donzela nem o
que a moça respondeu ; o que sei, é que se foram. Só ficaram a coruja
das torres esculpida à taberna do Pafunso e um mocho galego pintado
sobre a tabuleta duma pousada de Traz-os-Montes. Esta história contou
um cronista do século XVI, chamado Francisco de Assis. Também escriveu
que não tiveram filhos, mas seis corujas das torres e seis mochos
galegos.
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